Por Luciano Rodrigues, Partner da Know2Grow
Era hora de almoço e o tempo fazia aquelas caretas de Outono. Eu caminhava rua fora, absorto nos meus pensamentos, na lista interminável de tarefas para essa tarde. Tentava priorizá-las, organizá-las e de repente, eis que mais uma surgia na minha mente. Toca a refazer a ordem.
À minha volta reinava entretanto a desordem: S. Pedro abrira as comportas, caía uma carga de água das antigas e no céu relâmpagos sucediam-se como que anunciando o fim dos tempos. Por momentos esqueci-me das tarefas dessa tarde, corri para debaixo de um toldo e, olhando em volta, parei o olhar num homem
Seus setenta anos, (sobre)vividos como o seu corpo e pele não deixavam mentir, trabalhador da construção que, com uma marmita já devorada no colo, continuava impávido, sentado num banco de jardim, a fazer tempo para voltar a subir para a pequena obra que certamente estaria a fazer numa das muitas casas daquele bairro onde, nem em 4 vidas, poderia sonhar morar.
À minha volta, à sua volta, corriam todos para se abrigar da bátega. Ele não corria. Ficava. Olhei melhor para confirmar que estava molhado até aos ossos. Confirmo-o. E ainda assim, continuava como se estivesse tranquilamente a apanhar sol. Eu não percebia bem aquela serenidade, ou desistência. De quem já apanhou muitas tempestades vida fora.
De repente um grito. Dois. Num português que não é daqui. “Vem cá! Vem cá!” Era o empregado do restaurante nepalês que, debaixo do toldo onde eu estava abrigado, o chamava. Ele olhava e não ia. “Vem cá! Vem cá!” chamava de novo o nepalês que, na ausência de resposta, abandonou o seu posto, muniu-se de um guarda-chuva e foi ter com ele a correr, lhe deu a mão e o trouxe para debaixo do toldo.
Sob aquele céu, escuro como breu, vi ali um raio de sol. Humanidade na tempestade.
Já que estava ali parado, melhor sentar-me e almoçar, que um Prawn Curry nunca fez mal a ninguém. Sozinho, via a chuva lá fora e, com o restaurante desprovido de clientes, vi o empregado do restaurante, que então percebi ser o dono, trazer-lhe uma imperial e explicar, por gestos, que era oferta.
Pingando por todo o lado, o Zé – vamos chamar-lhe assim – aquecia a alma com a cerveja que lhe fora servida num guarda-chuva, de bandeja, por um nepalês. O Prawn Curry sedoso e aromático, desaparecia, o sol começava a brilhar lá fora e num canto do restaurante, um número incontável de miúdos indostânicos brincavam e estudavam.
O Zé lá saiu, com um sorriso agradecido, para a sua obra, e o dono do restaurante trouxe-me a continha. “16 paus? Isto há uns anos ficava a pouco mais de metade…” pensei eu enquanto puxava da carteira. Saindo do restaurante, já lá fora corriam os miúdos, banhados por um estranho sol, quente, poucos minutos depois do dilúvio.
Eu seguia feliz, sem interiorizar exatamente porquê. Talvez fosse do Prawn Curry… Passando num quiosque vi na capa de vários jornais parangonas sobre imigração, declarações deste político, análises daquele comentador…
Percebi a minha felicidade. Não acredito em mentiras. E acima de tudo acredito nos Homens. Gosto sempre quando a realidade confirma as minhas crenças. E naquele dia, quer eu quer o Zé, sentimos que a humanidade vale muito mais que a nacionalidade.