Foi hoje publicado no “Dinheiro Vivo” um artigo do Partner da Know2Grow Luciano Rodrigues, contabilista certificado, versando sobre os cada vez mais actuais temas da habitação, do Alojamento Local, Vistos Gold e fiscalidade que lhes está relacionada. É essa reflexão que o convidamos a ler de seguida.
Habitação: a raiz de todos os males não é AL nem Gold
O problema da habitação vai demorar 10 a 20 anos a resolver, a partir do momento em que efetivamente se queira que seja resolvido. Isto porque o problema habitacional resulta em grande medida de 15 anos praticamente sem construção, e em que a pouca construção existente foi em grande medida no segmento premium, que não resolve qualquer problema habitacional. Pelo que é preciso construir muito, durante muito tempo. É preciso atrair investidores, acelerar processos, investir na construção pública e dinamizar o mercado privado. É, ainda, preciso atrair mão-de-obra: na crise da dívida grande parte da mão-de-obra do sector da construção emigrou para a Europa Central e não regressou. Há, claramente, um problema gravíssimo de falta de mão-de-obra nesta área.
Definiram-se o Alojamento Local (AL) e Vistos Gold como a raiz de todos os males, no que ao problema da habitação diz respeito. Não há números, não há análises concretas, não se pesam prós e contras. São estes os culpados. E, se são culpados, ainda que julgados sem provas nem acusação formada, no pelourinho do mediatismo e das conversas de café, então proíba-se. Acalmam-se as hostes por uns tempos, e com (muita) fé o problema resolver-se-á.
A recente entrevista do Secretário de Estados dos Assuntos Fiscais (SEAF) foi interessante, porque se centrou na fiscalidade aplicável ao AL, e a fiscalidade diz-nos bem aquilo que o governo e quem está na área sabe: os “papões do AL”, com dezenas ou centenas de unidades, não existem. A esmagadora maioria dos operadores de AL são pequenos empresários em nome individual (ENI) no regime simplificado de tributação, pelo que naturalmente o SEAF passou meia hora a discutir tecnicamente as implicações tributárias nestes ENI. Quando pensamos nas grandes empresas de AL, na verdade o que elas fazem é a gestão da operação de dezenas ou centenas de ENIs, cobrando uma comissão pelo serviço que prestam (gerir reservas, limpeza, check-in). Há empresas que exploram dezenas de ALs? Há, poucas, muitas ligadas à hotelaria tradicional.
Ora, no Regime Simplificado de tributação (regime existente para pequenos ENI ou trabalhadores independentes, o que mostra bem a dimensão dos tais “papões do AL”), um regime com menos obrigações burocráticas, criado para promover pequenos negócios de subsistência, o ENI engloba 50% do rendimento total e é tributado em IRS. Curiosamente, se em vez de um AL o ENI explorar um pequeno Hotel, engloba 15% do rendimento. Recorde-se que originalmente também no AL, por ser considerado um serviço hoteleiro, o ENI englobava os 15%. Depois diferenciou-se AL de Hotelaria, e passou para 35%. Depois, como ainda não chegava, para 50%. Agora, para além disto, “toma lá” uma contribuição extraordinária de 35%.
Como o AL parece ser o parente pobre da economia, desde 2018 os ENI que fazem AL foram excluídos da Segurança Social, sem razão aparente ou alguma vez explicada, estando impedidos de fazer descontos, mesmo de forma voluntária. Para além das implicações óbvias (em situações de desemprego, doença ou reforma), pelo meio tivemos uma pandemia sem apoios, mas sendo disponibilizadas linhas de crédito do Turismo de Portugal para manter os negócios ativos. Dizia-se então que era preciso manter a capacidade instalada para a retoma, que o turismo seria fundamental para o país sair da crise. Empréstimos esses que começaram agora a ser pagos, exatamente quando querem acabar com o negócio. Sem haver suporte social para quem vive do negócio.
Também é importante verificar a dispersão na economia entre o dinheiro do AL e da hotelaria: com as suas economias de escala, as margens dos hotéis são incomensuravelmente superiores, não havendo contratação de serviços conexos a pequenos operadores: a lavandaria, a limpeza, o canalizador, o estudante que vai fazer o check in, etc. No fim, os lucros são transferidos para a casa mãe, num país com regime fiscal favorável, pelo que a sua distribuição não é depois tributada em Portugal.
O negócio do AL é normalmente bastante localizado no espaço, e nós assistimos a uma escalada do preço do imobiliário em todo o país, em todas as zonas. Ainda assim, se calhar a culpa é do AL. Será? Há 2 estudos sobre o impacto do AL no preço da habitação (ISCTE 2018 e FFMS em 2020), ambos concordam que há algum impacto, mas o mesmo é marginal. E se pensarmos que não há novas licenças de AL em Lisboa desde 2018, e os preços não parece que tenham estabilizado.
O problema também nunca foram os Vistos Gold, que tiveram algum impacto, de facto, numa fase inicial, há uma década. Nesse tempo, houve algum impacto nos imóveis de luxo, que na altura se compravam numa faixa acima dos 400 mil euros, e que sim, escalaram para os 500 mil euros para poderem servir para o Visto Gold. Portanto, esse foi o impacto dos Vistos Gold: num determinado momento, há muitos anos, impactou os preços dos imóveis de luxo. De resto nada. E basta ver que os Vistos Gold acabaram em Lisboa e Porto em 2021, e ninguém viu os preços descer. Os Vistos Gold podem ter muitos defeitos – começando porque, sendo este um país de espírito miserável, os vendemos demasiado baratos, e acabando nas questões éticas associadas a essa venda -, mas não são tidos nem achados neste tema da habitação.
Então, o problema são os Residentes Não Habituais (RNH), só pode ser essa a razão?! Serão os culpados a meia dúzia de milhar de reformados estrangeiros, os Suecos e Franceses que se começaram a instalar em Portugal no final da crise da dívida? Não passaram de uns poucos milhares e vinham para imóveis de luxo em localizações premium – nessa primeira fase o imobiliário, em padrões internacionais, estava baratíssimo em Portugal.
Mais tarde, começaram a vir mais uns milhares de estrangeiros, nesta fase alguns em idade ativa, mas que nunca trouxeram pressão ao mercado. No final de 2020 havia cerca de 50.000 RNH em Portugal, chegados ao longo de 11 anos. Nível zero de representatividade e pressão sobre os imóveis.
Aqui chegados, convém perceber o que é um RNH. Porque pelo que se vai lendo e ouvindo, parece que ninguém sabe exatamente. Ao contrário do que o nome indica, este não é um estatuto de residência (neste aspeto, só se pode ser ou residente fiscal, ou não residente fiscal), mas sim um benefício fiscal aplicável a novos residentes (que não podem ter sido residentes fiscais em Portugal nos últimos 5 anos). De uma forma genérica, traz dois tipos de possíveis benefícios:
– isenção de IRS em Portugal sobre rendimentos obtidos no Estrangeiro, desde que cumpram determinados critérios (não tenham sido obtidos em paraísos fiscais, paguem imposto no país de origem, resultem de atividades de elevado valor acrescentado (know-how)
– flat rate de IRS de 20% para salários obtidos em Portugal em profissões de elevado valor acrescentado (todos os restantes rendimentos obtidos em Portugal (capitais, prediais, mais-valias, etc.) pagam imposto como qualquer outro residente fiscal.
Em 2020, com a pandemia e a boa resposta nacional, primeiro enquanto nicho, após 2021 e 2022 de forma estrondosa, Portugal tornou-se possivelmente no maior hub mundial de trabalho remoto. Gente que procurava qualidade de vida e fugir de questões políticas – veja-se a explosão de chegadas de brasileiros e de norte-americanos, a maioria “fugindo” de um país altamente politizado, com graves problemas raciais e de auto-determinação sexual a nível interno. E foi esta explosão que, de facto, trouxe pressão ao mercado imobiliário. Porque o advento do trabalho remoto trouxe, em larga escala, pessoas e famílias perfeitamente normais, sem rendimentos extraordinários, e que procuram casas “normais” em Portugal, longe dos imóveis premium. Pequeno detalhe: nos seus países de origem, de onde continua a provir o seu rendimento de trabalho, facilmente se ganham 8, 10, 15 mil euros mês, sendo um bom profissional de determinada área.
Se um português nestas circunstâncias olha para si como rico, um estrangeiro não deixa de ser ver a si mesmo como “working class”. Vai procurar um imóvel de que goste, num sítio que goste, confortável, na maioria das vezes sem mordomias extraordinárias (ou seja, “casas para os portugueses”) e está disposto a pagar uns milhares de euros, uma parte relativamente pequena do seu orçamento familiar, para o ter. Disputando com a “working class” portuguesa, que ganha várias vezes menos, os mesmos imóveis. Está visto o resultado.
Há ainda uma outra categoria de RNH, nascida em 2022, com a guerra: houve uma deslocalização de multinacionais, que transferiram equipas inteiras dos seus escritórios na Rússia para os escritórios em Portugal – muitas vezes assumindo os custos de habitação, e sem grandes restrições de custos. E, ainda que em menor escala, assistimos também à chegada de muitos ucranianos, nomeadamente da área de TI, fugidos da guerra e que já trabalhavam remotamente na sua área, com rendimentos de nível internacional.
Isto sim já trouxe alguma pressão ao mercado nos últimos dois anos, ainda assim houvesse construção em níveis normais e teria pouco impacto. Uma vez mais, estamos a falar de uma gota no oceano, são umas dezenas de milhar de pessoas. Poderia, por exemplo, justificar escalada de preços em localizações mais específicas, em imóveis com determinadas características ou faixa de preços. Mas, não. O mercado, todo ele, continuou a subir.
Então quem é que está, neste momento, nos últimos anos, a colocar verdadeira pressão na procura no mercado habitacional?
Depois do Visto Nómada Digital, apresentado com pompa e circunstância há poucos meses, o Governo nunca poderia apontar o elefante na sala. Publicamente, ninguém dá pelos Nómadas Digitais, porque eles se confundem com turistas. Ninguém os “vê” (na rua, são turistas), ninguém sabe que existem (trabalham em casa ou co-workings partilhados com dezenas de outros Nómadas Digitais), não pagam efetivamente impostos em Portugal (está para nascer o primeiro estrangeiro que se regista na AT como residente fiscal para cá morar uns quantos meses, que por vezes acaba por ser em permanência porque a vida por aqui é boa e barata) e trouxeram o caos ao mercado de arrendamento, de facto.
Só em 2021 e especialmente 2022, ano de explosão desta “classe”, terão passado neste regime por Portugal, em estadias mais ou menos prolongadas, um número na ordem de centenas de milhar de estrangeiros. Repare-se que não são turistas, que ficam uns dias. Chegam para ficar meses. Vão arrendar casas. E, tipicamente, vivem sozinhos, não têm uma vida pessoal/familiar estabelecida algures, tendo rendimentos muito elevados derivados das áreas do digital ou TI, e que quando chegam não têm qualquer objetivo de poupança, ou seja, chegam para trabalhar e aproveitar o tempo aqui passado. Estão disponíveis para pagar um SMN (salário mínimo nacional) por um quarto. Ou múltiplos do SMN por um apartamento não mais do que simpático. São pessoas normalmente desprendidas, quer ao dinheiro, quer ao status, pelo que estão disponíveis para pagar muito recebendo o que, para muitos, não vale nem metade do que dão. É esta a efetiva pressão sobre os preços nos últimos dois anos no arrendamento.
Portanto, construa-se e promova-se a construção. Incentive-se, ao invés de castigar. E haja seriedade na análise do problema e nas soluções propostas. É, sem dúvida, tempo de agir na habitação. Mas às vezes, se não conhecemos o problema nem sabemos como o resolver, mais vale estar quieto. Governar um país, tal como gerir uma empresa ou um lar, é exatamente isso: identificar problemas e oportunidades, e agir tendo em mente que cada ação desenvolvida vai trazer consequências positivas e negativas, que devem ser balanceadas de forma que o resultado tenha um saldo positivo. Ao invés de não resolver o problema que já existe, criando ainda outros.
Luciano Rodrigues, contabilista certificado, Partner da Know2Grow